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terça-feira, 8 de março de 2011

O convívio na Ilha da Culatra: os homens e as mulheres

O que pode parecer machista ou feminista à primeira vista de quem visita pela primeira vez a Ilha da Culatra, é apenas uma questão de tradição e de hábito. Um observador vindo de fora olha com curiosidade que o convívio na Ilha da Culatra é encarado de maneira diferente. É uma ilha, como que uma pequena aldeia, em que todos ou quase todos são de família, ou relacionados por casamento. Basta dizer isto para confundir as mentes mais pensadoras: tenho primos lá que são meus primos pela parte do meu pai em primeiro grau e primos em segundo grau pela parte da minha mãe (isto sem querer confundir muito, pois acredite-se que consigo).
Numa ilha em que não só isso, mas em que todos se conhecem, pois viram-se crescer, é natural que o convívio seja alargado a todas as idades e que haja um sentimento de pertença e de união muito fortes. Qualquer pessoa que venha “de fora” estranhará primeiramente, na visita a um dos cafés que as pessoas se aglomerem em grandes grupos e ainda mais que geralmente as mulheres e os homens convivam em separado.
Há uns anos atrás os “cafés” não eram cafés. Eram tabernas, frequentadas por homens. As mulheres não eram bem vistas se fossem ao café e era impensável que uma mulher solteira se sentasse no café ao lado de um homem. Depois do 25 de Abril, as mentalidades mudaram um pouco. Não foi instantâneo, mas facto é que mudaram por todo o país e isso é do conhecimento geral. Essa geração para azo das más línguas ( e isto valeu muitos puxões de orelhas das mães) começou a frequentar cafés, a fumar, tal qual só os homens faziam antes. Tanto que “ir ao café” tornou-se parte integrante do convívio entre as pessoas, que se sentam para beber e conversar, às vezes para petiscar, pois o culatrense é um povo animado e gosta de conversar, conviver, dançar, enfim, igual a qualquer outra terra, não é? No entanto há um forte sentimento de respeito entre todos.


foto tirada do site http://fotosa.ru/ru/stock/search.asp?ID=2764040 homens da Ilha da Culatra em torneio de volei

É imagem da minha infância, e quando digo isto estou a ir aos anos 80, os cafés com longos balcões, muitos deles também mercearias, balcões esses frequentados por homens encostados a conversar uns com os outros sobre futebol e pesca e as mulheres sentadas nas poucas mesas.
Ora ver as mulheres a conversar por um lado e no mesmo “café” os homens noutra sala pode parecer estranho, como disse, mas tem tudo a ver com interesses e convívio. É uma Ilha. Elas não precisam de marcar na agenda encontrar-se com os maridos, como muitas mulheres nas cidades o fazem. Também não passam o dia inteiro sem os ver. É fácil e digamos até inevitável, sendo uma ilha, que se vão encontrando de vez em quando. Cada qual agrupa-se por área de interesse discutindo os seus assuntos, quer estes sejam lingeries, coisas pessoais, combinar um jantar entre todas, conversar sobre os filhos, rir, contar umas piadas. Os homens, por sua vez vão ver o futebol e falam dos seus assuntos também, como a pesca, o futebol, os ganhos, combinam jantares de amigos, entre coisas que tais.
Sentem-se assim, confortáveis. Não é muito comum ver um casal junto na mesma mesa a tomar café. Conversam em casa. Os cafés são para conviver com os outros. Tento explicar: não é machismo. É uma ilha. Os cafés tornaram-se pontos de convívio. Ao fim de semana, é como um qualquer casal moderno faz, ela vai jantar com as amigas e ele com os amigos... a diferença é que tendenciosamente encontram-se e às vezes até jantam no mesmo restaurante, só que em mesas diferentes. Brincam com o assunto. É o “grupo delas”. E os “eles”. E todos convivem em paz, salvo uma discussãozita ou outra, que também acontece nas melhores famílias, quanto mais numa família tão grande.
Os cafés mudaram muito ao longo dos tempos. Muitos deles agora também são restaurantes. Já não têm mercearias em anexo. As mercearias são pequenos supermercados, os cafés continuam com balcões grandes, mas têm mais mesas. A maior parte deles tem esplanadas. As mulheres continuam a agrupar-se todas juntas e os homens todos juntos. Eles jogam “sueca”, poker de dados, snooker, vêem futebol, discutem futebol, jogam matraquilhos. Elas jogam matraquilhos, sueca e poker de dados, às vezes snooker, lêem revistas e falam dos seus assuntos.
Eles vão ao mar, elas dedicam-se à ameîjoa, ou a outras actividades piscatórias. Eles andam nos barcos de pesca, elas educam os filhos e muitas vezes ajudam e participam também na faina. Muitas delas, com o avançar dos tempos, têm empregos em Olhão, ou em Faro, nas mais diversas áreas. A mulher da Ilha acompanha os seus entes ao médico, vai às compras e é mais expedita a tratar certos assuntos que os homens não gostam (e muitos não sabem!). O homem culatrense é por norma fisicamente forte, homem do mar, corajoso, sociável, sensível e com um grande sentido de responsabilidade e do seu lugar na comunidade. As mulheres são mais perspicazes, também elas fortes, com um grande sentido de família, capazes de ir ao mar se de tal houver necessidade.
Nos últimos tempos elas têm-se interessado mais por continuar a estudar do que eles, ocupados nas suas vidas de sempre. A mulher culatrense tem tido tendência a estudar mais, para aprender mais, e tem evoluído de maneiras que eram difíceis de realizar antes, devido aos próprios condicionamentos sociais impostos pela ditadura, e exactamente como aconteceu um pouco por todo o país, a mulher culatrense vai aos poucos, encontrando o seu lugar na sociedade. Talvez por isso mesmo é que tem havido da parte das mulheres mais preocupação em evoluir a nível de conhecimento e de competências. Elas têm andado a lutar pelo seu lugar, eles já o tinham. E declaro isto sem feminismos ou machismos, as coisas são mesmo assim. Elas organizam o apoio social, a Associação de Moradores, as festas. Eles gerem o clube de futebol e fazem as coisas para as quais é necessário mais força física. A mulher culatrense é essencial na união de toda a comunidade e no que toca à gestão de esforços. O homem culatrense é essencial nas questões práticas. São dotados do senso comum que ajuda à realização de projectos. Todos vão ao “café”, elas por um lado, eles por outro, todos se divertem com os amigos e ninguém acha isso estranho a não ser quem vem de fora. Também não tardam a habituar-se.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A infância e ensino na Ilha da Culatra ao longo dos tempos

Todos sabemos que uma das pedras-chave da ditadura de Salazar foi a alfabetização da população. A quarta classe era essencial e fazia parte do molde educativo do Novo Estado, juntamente com o amor à bandeira, os textos sobre as colónias, o exacerbar dos grandes feitos do povo português, o cantar do hino e a familiar foto por cima do quadro negro. Para muitos portugueses que cresceram nessa época foram educados assim e a Ilha da Culatra não passou despercebida. Quando as crianças nasciam eram registadas mais tarde, pois nem sempre era possível ir logo registar. Assim sendo, há uma toda geração que não tem nos seus registos a verdadeira data de nascimento. Na altura, também não era dada a extrema importância a essas coisas pois o importante era providenciar sustento para a família, que geralmente era mais alargada que as famílias dos dias de hoje. As proles eram enormes, na maior parte dos casos.
Atente-se na Ilha da Culatra outra vez. Já contei que grande parte da população era registada conforme possível, muitas vezes com meses e até anos de diferença ao real nascimento. A escola primária era no antigo “salva-vidas” e já nos tempos da minha avó estava em ruínas. Foi salva vidas enquanto a areia não ganhou terreno à costa e depois o casarão foi transformado em escola primária. As professoras vinham de “terra”, ou seja, de Olhão e muitas vezes no rigor do Inverno (não haviam serviços de carreira como nos dias de hoje) não podia haver aulas. No entanto, há relatos de de professoras que pernoitavam na Ilha.
Na minha infância o antigo salva-vidas e antiga escola era um edíficio em ruínas, onde era perigosamente divertido ir brincar. É a última casa antes do caminho para a costa. Tinha umas escadaria de ferro, que já no tempo de primária de minha avó há mais de sessenta anos eram perigosas, no meu tempo, impraticáveis e cheias de ferrugem.
No final dos anos noventa o edíficio em ruínas ex-salva vidas, ex-escola primária foi reabilitado, as suas paredes deitadas abaixo e deu lugar ao centro social e infantário. Nos dias de hoje é de lá que saiem as refeições para os idosos, numa pequena motorizada de caixa fechada que os distribui pelas casas dos utentes, tal e qual acontece nos outros sítios, com um grande pendor social e consciência comunitária. Este centro de dia está a cargo da Associação Nossa Senhora dos Navegantes.
A escola fica um pouco mais abaixo agora e desde que me entendo por gente que lá está. Na minha infância era um barracão pré-fabricado, com um poço de água estéril atrás. Tenho a ideia de que aderiu, no final dos anos setenta (de acordo com as memórias de um dos antigos alunos deste sistema, em 1976) ao conceito de tele-escola. Hoje em dia lecciona da primeira classe até ao sexto ano, sendo que a partir daí os alunos vão e voltam para a escola nos barcos da carreira, até há pouco tempo para a cidade de Olhão, se bem que Faro hoje em dia está a começar a oferecer a alternativa, visto que na verdade, os habitantes da Ilha da Culatra pertencem a Faro e não à cidade de Olhão. Já não é um pré-fabricado e está em melhores condições de que há uns anos. Os professores continuam a vir de Olhão, ou outras cidades todos os dias.
Além do sistema de ensino normal, também têm havido projectos de re-educação, pequenos cursos para adultos, como um pouco por todo o país, de forma a que os adultos tenham a hipótese de ter também para si, a escolaridade mínima obrigatória.
Os habitantes que mais se agarraram às novas oportunidades foram as mulheres da Ilha da Culatra, que têm, ano após ano, começado a entender o seu papel no seio da comunidade, mais livres dos preconceitos morais e políticos, talvez mais interessadas em aprender e evoluir. E é com a participação feminina nos assuntos do dia a dia da Ilha da Culatra que se têm organizado os habitantes e reinvidicado mais e melhores condições.

No próximo post falaremos sobre todas as diferenças entre cães e gatos, ou seja, os homens e as mulheres na Ilha da Culatra e respectivos papéis na vida desta comunidade essencialmente piscatória.